21 de dezembro de 2010 | 0h 00
Ao apagar das luzes, fui ver a Bienal. Quase não escrevo sobre ela, mas não aguentei, apesar de não ser crítico de arte. A sensação dominante que tive foi de ruínas ou de despejos da civilização. Saí triste. Os trabalhos repetem os mesmos códigos e repertórios: terra arrasada, materiais brutos e sujos, desarmonia, assimetria, uma vergonha de ser "arte", vergonha de provocar sentimentos de prazer. A fruição poética é impedida, como se o prazer fosse uma coisa reacionária, "alienada", ignorando o "mal do mundo", que tem de ser esfregado na cara do espectador para que ele não esqueça o horror que nos assola.
Há um propósito de evitar qualquer transcendência artística. Um crítico escreveu: "O paradigma romântico foi desmantelado no século 20, porque apresenta a arte como algo universal, acima da realidade social e política."
Ou seja, a razão maior da arte, que é justamente esse mistério que aponta para "as coisas vagas" (como escreveu Paul Valéry) sem as quais não há reflexão poética ou filosófica, foi jogada fora, em nome de uma racionalização criada para substituir nossa impotência política real.
Fui andando pelo pavilhão maravilhoso do Niemeyer, pensando que o edifício "modernista" era superior a qualquer panfletinho ali exposto.
Pensei que o império da sordidez mercantil, a ignorância no poder, o fanatismo do terror, a boçalidade cultural, toda a tempestade de bosta que nos ronda está muito além do alcance crítico de qualquer "denúncia" artística. Não adianta mais "chocar" ou "conscientizar" ninguém. Nada que haja na Bienal nos choca mais que homens-bomba explodindo discotecas ou a fome na África ou a lama das favelas e periferias. Nada. Os gestos enraivecidos da antiarte nem arranham a pele do mundo. Nesta Bienal vi um parque temático de deprimidos, um muro de lamentações inúteis - a melancolia como "denúncia" de uma vida sem solução, quando a grande crítica ao Ocidente é feita pelos terroristas islâmicos. A infeliz sentença de Stockhausen chamando o 11 de Setembro de "obra de arte" tem, sim, um bruto fundo de verdade. Nada pode explicar ou evitar aquele horror. Nunca imaginávamos que o século 21 seria parecido com o século 7.º, quando Maomé se declarou o único profeta.
Intelectuais e artistas vivem em pânico, pois o tempo de sínteses se extinguiu. Os acontecimentos estão incompreensíveis e, no entanto, óbvios demais. Claro que os artistas contemporâneos não podem ignorar o horror do mundo e têm de acusar o golpe. Sim, mas mesmo em tempos terríveis, há que se buscar alguma transcendência, esperança e vitalidade.
Tropeçando em perigosas "instalações", pensei que a morte da "aura" da arte é menos aceita do que pensávamos. Hoje, muitos artistas se veem como ex-profetas abandonados e passaram a usar a luz da "aura" como um halo, como uma coroa de espinhos para sua solidão. O artista quer virar obra de arte. E tudo faz para esquecer seu abandono, mesmo que seja expor seus excrementos numa latinha. E vemos que ele não abriu mão da representação, mas cultiva-a ao avesso da beleza, como uma doença favorita. Ele é a representação, ele é a paisagem.
Acho que nesta desistência da arte transcendental há um complexo de inferioridade diante da tecnociência, que está avassalando nossas vidas. Nietzsche não concordaria: "A arte é mais poderosa que a Ciência, pois ela quer a vida, enquanto o objetivo final do conhecimento é o aniquilamento." Nietzsche escreveu isso no fim do século passado, querendo dizer que, por trás da busca científica e racional da verdade, mora o desejo da morte, de esgotamento da vida, por uma letal explicação de tudo.
Claro que não tenho nível para aprofundar este tema; mas temos hoje esta metástase digital hipertecnológica ao lado de um indigente, tuberculoso, desempenho artístico do mundo. Temos de um lado o mercantilismo escroto de Hollywood, dos teatrões, das galerias chiques ou dos best-sellers. Do outro, a solidão melancólica das Documentas, os bodões negros dos guetos da revolta "oficial".
Sem dúvida, a grandeza da arte contemporânea é de se misturar à vida, sem suporte, mas sem negá-la de fora, atacando-a com rancor por sua falta de sentido claro. Nisso, o WikiLeaks mata a pau.
Movidos pela idéia socrática de que a arte tem de ser subordinada à Razão, os artistas caíram numa denúncia melancólica das impossibilidades. Não há futuro para esta idéia de arte, seja ela digital, mercantil, iluminista ou o cacete a quatro. A celebração dionisíaca do existir não pode ser considerada frescura ou alienação.
Prevaleceu a vertente "triste" do modernismo, a vertente "conceitual" que joga sobre o "mal do mundo" apenas uma ideologia nevoenta de condenações sem nome, apenas uma arte enojada contra o mal-estar da civilização.
Por que a melancolia seria mais profunda que a alegria? Como explicar Fred Astaire, Busby Berkeley, Cantando na Chuva, a arte pop, o jazz? Depois do pop, será que uma "aids conceitual" não atacou tudo, depauperando a luta? Será que não se esgotou a denúncia do feio pelo "mais feio", que odeia a vida real, por adesão a um impossível finalismo? O "novo" não poderia ser um "belo" que denuncia, com sua luz, a injusta vida?
Precisamos de arte, como uvas e frutos e danças e como um coro de Silenos, de Dionísios, pois a ciência e a razão estão querendo chegar até os ossos da "essência". A arte é a ilusão aceita, a clareza feliz de que a aparência é o lugar do humano e que só nos resta essa hipótese de felicidade num planeta gelado. Não a arte-espetáculo, mercadoria de ver, mas a arte como ritual de embelezamento da vida. Nietzsche: "A ilusão é a essência em que o homem se criou."
Lembrei-me então de uma frase de Stravinski: "A obra de arte deve ser exaltante." E uma de Artaud: "A arte não é a imitação da vida; a vida é que é a imitação de "algo" transcendental com que a arte nos põe em contato." Por isso, não gostei da Bienal.
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